terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A VERDADEIRA BIOGRAFIA: O PERCURSO



A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para

continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade

de Belas Artes.

Da infância passada em plena

Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência

e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre

interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei “Uma Época
No Inferno” de um rapazito
chamado Jean - Arthur Rimbaud.

Na Biblioteca o empregado

olha-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?

A entrada na vida adulta
aliada à independência

e ao amor. O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto

europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo

para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.

Mudando de assunto a pátria

é grande e a família também.
Para mim já passou

o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.

Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.
Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo

perfumado do crisma.

Sempre que vou a uma missa

de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante

virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive

quinze anos e também
adorei.

Depois a Páscoa a soturna

via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.

Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim

a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.

Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde

para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam

uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço

o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.

Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer

estes versos
antes da eutanásia.



Revista Relâmpago nº18 4/2006

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Isabel.
Não conhecia este teu texto. Ao lê-lo quase ouvi o som tranquilo da tua voz. Que saudades...

. disse...

brilhante.

susana