quinta-feira, 22 de julho de 2010

quarta-feira, 21 de julho de 2010

sábado, 17 de julho de 2010

Poema do livro O FESTIM DAS SERPENTES NOVAS. 1982 (1a edição)

Afinal desisto da carta, pensei, absorta num lençol de água- círculo quase fechado sem querer saber dos outros, lembrando apenas, respirando a vida possível. O sol?
Escolho os recantos da sombra, os rios.
Se me volto para o exterior perco o fio de mim, das crianças ainda palpitantes de imaginação, olhares claros na densidade das salas.
Vigiam-me, passeiam-se pelo granito arrastando os sapatos e os sonhos em carrinhos de papel fantasiado. Param a olhar os dedos, o redondo das pequenas unhas. Apalpam-se. Fumam cigarros à sua medida e pensam como será quando forem grandes. Reúnem-se nas retretes e choram ao lembrar a infância de que já não têm memória, tal foi o afogueamento, o frenesim, a pressa de crescer, fazerem vida. Então choram e abraçam-se num local escondido, demasiado íntimo talvez.
Que fizeram dos caramelos, das moedas e das outras mãos a que se davam, não sabem. Os caminhos das silvas estão agora obstruídos. Répteis mijam nas amoras, empestam os silvados onde rosas demasiadas crescem violentamente durante a primavera.

REALIDADE- Poema do livro A EROSÃO DE SENTIMENTOS, 1997

Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolaram-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.

Poema do livro EM NOME DO CORPO, 1985

Poderia gastar muita tinta a escrever sobre um corpo ou vários. Porém apenas o instante do encontro é precioso. Viver a cena sem palavras, o ritual.
Na penumbra os corpos tocam-se antes da sílaba inaugural. Começar é sempre um escândalo, é desviar a instituição da sua verdadeira finalidade e da sua inocência.

Poema do livro O BRILHO DA LAMA,1999

Bispos, rostos de luxúria
e tirania
povoam o insólito mundo de homens
anónimos das cidades.

Amantes encontram-se, furtivamente.
Frisos de belos figurantes
sonham com amores pecaminosos

Poema do livro RESTOS DE INFANTAS

A cinza de luz é tanta que não posso abandonar-me.

Lento sofrimento este
sem tocar dedos de sombra, queimaduras ou luva.
Ou respirar de outro ser, tão fuído, desolado e frio

DENTRO DAS IMAGENS

Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.


.
Antologia RESUMO 2009
2010, ed. Assírio e Alvim

Poema do livro ESCREVO PARA DESISTIR

Quando em noites de insónia acontece pensar naquilo que éramos e nos vem à memória uma ou outra imagem feliz, subitamente ficamos conscientes da vertigem do tempo. Nessas noites entro em mim própria e procuro saber qual a razão que me fez tomar certa atitude, o que me leva a escrever e ficar dependente das palavras. Penso no poema onde a sobrevivência pela escrita é possível. Escrever é como estar vivo; existe o apelo abísmico e a luz do sol.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poema do livro O BRILHO DA LAMA,1999

Depois do amor
deixavas o quarto na penumbra,
os lençóis usados, o perfume
dos corpos e o abraço.
Depois, noutro lugar da casa
as persianas quase fechadas,
a luz filtrada como num quadro
de Matisse, um poema
nalguma voz excepcional
e o cigarro, lentamente.
Ainda um beijo perdido e tímido,
o aroma do gel de banho.
A porta fechava-se por fim
e nós íamos pelas ruas
ao anoitecer sentindo a atmosfera
de cada dia, a despedida
com a certeza doutro encontro.

O TRABALHO ACIMA DA VIDA do livro EROSÃO DE SENTIMENTOS.1997

Antes de completar trinta anos
já Katherine Mansfield
andava apoiada numa bengala.
Publicou o primeiro conto
ainda criança
na revista da vila onde nasceu.
Estudou em Inglaterra, fez-se
nómada.Entregue a si própria
andou à deriva, foi actriz
de segunda, conheceu o desastre
de ser mulher. Teve editor
para a estreia, nada recebeu.
Numa vida confusa e presa à doença,
sofre de insónias, envelhece sempre.
O corpo é enterrado na vala comum.
Seis anos passados sobre o cadáver,
Richard Murry decide dar-lhe
sepultura decente. O guarda
do cemitério quase faleceu
ao ver Katherine intocada.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Poema do livro AUTISMO. 1984

CHEGADO ERA O TEMPO I


Chegado era o tempo das crianças de íris branca.
Adornadas, em seu barcos de papel noticioso.
A criança falou: Três filhos mortos, restos de lençol. Meu irmão amante podre em dia desejado. Mão aberta aos insectos, por eles preferida. Lodo em armários, sapatos alvaiados mais luminosos que o branco.
Aproximando-se da casa, o homem observava sua face repartida na luz.
Exausta memória, o excesso, quase paixão.
Que dizer do tempo, adolescência promíscua; mulheres, homens sobre enxergas de luxo.
O jovem encostou-se ao muro. Disse: Vamos desenterrar o menino. Amar-lhe as vísceras.Respirar nele e por ele.
Raparigas enforcavam-se.
De negro o homem passou. Na sombra.Entrou na sala: Amigos, vossos corações de alumínio servem o amor. Vossas esposas e maridos. Vossas esporas e cavalos.
De novo a criança interveio: Três filhos mortos pendurados na cave.
Meu irmão amante belíssimo nascido de ostentoso ventre.
Água em armários.
Chaves de caixões enleadas por branca fita de cetim. As irónicas flores de casamento.
Elevando a voz, a criança continuou: Apenas a música. Necessito de beleza. Fortalece-me a destruição, o desejo.
Pederastas disseram não haver definição para esse paraíso: os olhos do menino.
Falaram de perfeição absoluta, portas abertas a rios.

Poema do livro O FESTIM DAS SERPENTES NOVAS. 1982

Dormirás sobre meu ventre
aí depondo teus receio.


Surgirás em tal beleza, que não mais haverá distinções.
Serás ele.Ela.