segunda-feira, 16 de agosto de 2010

PORQUE SEM BELEZA NÃO SE AGUENTA ESTAR VIVO

Somos tu e eu no inferno do amor.
Limpo a cinza do rosto
sem tocar a morte que o cobre.
Nenhuma experiência é igual a outra.
Dividido, o texto é um destroço.
O abismo iluminado voltou. Matar-me-ás
com beleza, beleza.

O abismo iluminado voltou.
Numa manhã a Morte sorriu.
A criança vagueava. Um homem
de encontro a outro homem na beleza
da folhagem. Serás ele. Ela.
O poema nascia, cristalino.

Não existe saída na escuridão
da página. Quisera alienar-me
com o poema. Celebrar a vida
ou vaguear até ao suicídio.
Ninguém há que seja eu. A beleza
do início fala de um lodaçal
encoberto pela bruma das palavras.
O poema é um acto insurrecto.

Chegada é a hora propícia às sombras.
Do nada estoiram visões. Impossível
esconder o rosto ou fugir ao tumulto.
Crianças sem memória faleciam.
As palavras agitam-se em filamentos
de luz. O poema transforma
o nosso rosto naquele que desconhecemos.
Necessito de beleza, fortalece-me
a destruição, o desejo.

Ardem as páginas sob o gesto
frio da mão que escreve.
O menino louco. À sua infância
foi dado mais um ser que amou
inteiro. Há uma espécie de anestesia
que é também autismo. Crianças
com seus trajes fúnebres, grinaldas.
Por vezes tudo é ruína.
Esqueci-me das palavras
do passado. Não soube prescindir da beleza.
O teu corpo
agora menos só. Digo-te que desistas.
És desconhecida de ti.

Eram palavras brancas desenhadas a pincel.
Uma menina passou em busca de beleza.
Recolhia desencantos, visões. Nada sabia
do sentido do tempo. Pérolas rolavam
em direcção ao seio da mulher.
Rimo-nos primeiro com essa alegria
do princípio. E a tarde caía como nos romances.


a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico.pt, 2007